Lesões na nuca e na cabeça, nos braços e nas costas. Um exame de corpo delito atesta as marcas no corpo da carioca A. P. Ela relata que o marido a espancou depois de tentar forçá-la a fazer sexo em um momento em que ela não queria.
A jovem E. B. não ficou com hematomas no corpo, mas conta que os traumas de um abuso sexual cometido por um líder religioso quando ela era pequena a marcaram durante toda a vida.
Ambas eram Testemunhas de Jeová quando foram vítimas dos crimes, contam, assim como seus abusadores.
E. B. e A. P. estão entre as seis ex-Testemunhas de Jeová que disseram foram coagidas a procurar a igreja — e não a polícia — quando eram vítimas de algum ataque. Elas afirmam que a organização teria acobertado os crimes e protegido predadores.
Parte dos crimes, dizem, foram cometidos por “anciãos” — homens respeitados dentro da igreja, que têm privilégios e atuam como conselheiros e juízes.
As acusações de acobertamento de abuso sexual e violência contra a mulher dentro do grupo estão sendo investigadas pelo Ministério Público de São Paulo, mas as denúncias não se restringem ao Estado.
A associação das Testemunhas de Jeová do Brasil diz que “abominam qualquer tipo de violência, inclusive a sexual e a consideram como um crime” e nega que haja qualquer tipo de acobertamento de crimes.
A entidade diz que também que os casos específicos investigados pelo Ministério Público estão sob segredo de Justiça.
“As Testemunhas de Jeová reconhecem que compete às autoridades apurar se houve ou não algum delito e elas irão colaborar com qualquer procedimento jurídico”, diz a organização em nota.
“O bem-estar de crianças e adolescentes é de máxima importância para as Testemunhas de Jeová, por isso publicamos inúmeras matérias baseadas na Bíblia para ajudar os pais a cumprir a sua responsabilidade de proteger e instruir seus filhos”, dizem, citando uma série de publicações como referência, como, por exemplo, textos com os títulos “Um perigo que preocupa todos os pais”, “Como proteger seus filhos” e “Faça de seu lar um abrigo seguro”.
Sem escolha
“Eu não tive escolha sobre entrar nessa seita ou não”, diz a cuidadora de idosos E. B., de 37 anos, que foi educada como testemunha de Jeová desde criança.
Sua mãe era da religião e E.B. cresceu acreditando nos seus ensinamentos. “Eles falam muito do Armagedom, então você cresce morrendo de medo do fim do mundo. Também fazem um terror sobre as pessoas que são de fora, que eles chamam de ‘pessoas do mundo’, dizem que aqui fora você vai ser maltratado, que tudo é horrível, que as pessoas vão se aproveitar de você”, conta.
Dentro da igreja, os líderes são chamados de “anciãos”: são homens com cargos de liderança, não necessariamente idosos. “Eles são vistos como puros, respeitáveis, nunca que você vai imaginar que eles vão abusar de uma criança”, diz E.B.
Foi por isso que a mãe da menina confiou quando um ancião de uma das congregações de Testemunhas de Jeová de São José do Rio Preto pediu para levá-la para a sede da entidade na cidade, conta. Ela tinha 12 anos e iria ser questionada sobre a fé, como parte da preparação para seu batismo. As perguntas normalmente são feitas com várias crianças ao mesmo tempo.
“Eu achei que quando a gente fosse chegar lá no salão ia ter mais gente, mas estava só eu e ele. Ele me levou sozinha para uma sala e trancou a porta”, diz.
Crime
“Ele começou a falar do meu corpo, falar que já fazia tempo que ele me notava, que ele percebia que eu não usava sutiã. Achei muito esquisito. Ele perguntou se eu já tinha tido relações, se eu já tinha visto um pênis. E começou a falar que o dele era maior que a média, e colocou para fora, mostrou pra mim.”
“Eu era uma criança, não sabia nada dessa parte sexual. Eu fiquei muito assustada, muito envergonhada. Mas ao mesmo tempo eu achava que aquilo fazia parte… Eu não estava entendendo. Achei que ele estivesse fazendo algum teste comigo.”
O homem então se colocou atrás da menina e começou a tocar nos seus seios e se esfregar nela, diz E.B.
“Eu fiquei muito assustada, não sabia o que fazer. Disse que estava passando mal e fui para o banheiro. Fiquei um tempão lá, mas eu não tinha para onde fugir porque a porta estava trancada.”
E.B. conta que depois, no caminho de volta para a casa dela, o ancião tentou convencê-la a ir para a casa dele e tentou embriagá-la. “Depois disse que eu ‘tinha obrigado’ ele a ir se aliviar no banheiro. Eu era tão inocente que nem entendi o que ele quis dizer”, relata.
Acobertamento
E.B. diz que falou sobre o episódio para a mãe, apesar do abusador dizer a ela para não falar nada para ninguém. “Ela não falou nada para mim. Para ela, o que eles falavam era como se fosse Deus falando, então ela não confrontou ele.”
Quando ouviu que o mesmo homem havia “mexido” com outra pessoa no Salão do Reino (como são chamados os locais de encontro dos religiosos), E.B. resolveu contar para outros anciãos o que tinha se passado.
“Eles ficaram bem desconcertados, mas falaram para eu deixar nas mãos de Jeová, que Jeová ia resolver esse assunto. Que era para eu orar, perdoar ele pelo que ele fez e que Deus consolasse meu coração” diz ela. “E ainda pediram para não comentar com mais ninguém porque ele tinha esposa e filha, porque isso podia virar caso de polícia e a gente evita que vire caso de polícia.”
A BBC News Brasil conversou com quatro ex-anciãos que afirmaram que a orientação da organização sempre foi para que todos que os líderes resolvessem os problemas entre membros internamente, aconselhando-os a não procurar as autoridades para evitar “vilipendiar” o nome da religião.
‘Justiça paralela’
Nos documentos oficiais da Associação das Testemunhas Cristãs de Jeová, que tem sede nos EUA e tem diversas publicações e comunicados enviados para as filiais no mundo, há orientações explícitas para que anciãos resolvam quaisquer problemas entre membros internamente.
Como explicam esses documentos, pessoas acusadas de cometer crimes e irregularidades são julgadas por anciãos em uma reunião chamada ‘comissão judicativa’. Mas para que uma acusação gere uma comissão — incluindo casos de abuso sexual de crianças ou violência contra a mulher — é exigido que haja duas testemunhas. Tudo isso está detalhado no livro dos anciãos, que é acessível somente aos líderes e não é compartilhado com os outros fiéis.
“Anciãos não estão autorizados pelas Escrituras e tomar ação congregacional a menos que haja confissão ou duas testemunhas confiáveis”, diz trecho de uma carta de 2012 sobre abuso sexual enviadas pela sede para as filiais no mundo. Há nove cartas sobre o assunto datando desde 1992 — a carta de 2012 ordena as congregações a tirar do arquivo e destruir todas as cartas anteriores.
“São crimes que por sua natureza não têm testemunhas, e que precisam ser investigados pelas autoridades, que têm condições de fazê-lo”, afirma Celeste Santos, promotora do Ministério Público de São Paulo que investiga os casos.
As cartas sobre pedofilia repassadas pela sede para as filiais dizem que é possível manter um abusador na congregação desde que ele tenha “se arrependido”.
“O departamento de serviço [jurídico] vai dar orientações quando uma comissão judicativa conclui que alguém culpado de abuso sexual de menores está arrependido e pode permanecer na congregação”, diz uma carta de 2016.
“Em 2015, depois de muitos escândalos, eles deram uma nova orientação da igreja para os anciãos não desencorajar pessoas que desejam buscar as autoridades. Mas na prática existe toda uma cultura de acobertamento que continuou”, afirma Eduardo*, que foi ancião até 2016.
A orientação oficial da organização para os anciãos hoje é que procurarem o escritório jurídico da igreja em caso de denúncias de abuso de menores. “Em alguns países, quem fica sabendo de um suposto caso de abuso de menores é obrigado por lei a denunciar o caso às autoridades”, diz a versão de 2019 do manual dos anciãos.
O ex-ancião Marcus Borges*, que deixou a religião no início de 2020, diz que “a prática de lidar com o caso internamente, sem levar às autoridades”, dura até hoje. “E essa exigência das testemunhas [para que a pessoa seja desligada] faz com que a maioria dos casos sejam ignorados”, diz ele.
“É uma seita com uma Justiça paralela, que você desestimula as pessoas a procurar a Justiça”, acrescenta o ex-ancião Eduardo.
“Você tinha que dizer: ‘se quiser procurar a polícia é uma questão sua, mas tem que pensar que vai causar um vitupério para o nome de Jeová'”, conta Eduardo. “É uma instrução que você é obrigado a seguir. Se você não seguir, você perde privilégios, você é desqualificado como ancião”, afirma.”Eu já cheguei a burlar as regras para desassociar um pedófilo.”
Eduardo conta que teve que lidar com cinco denúncias de abuso sexual contra crianças ao longo dos dez anos que trabalhou como ancião — as discordâncias dele com os métodos da organização, diz, acabaram por eventualmente levá-lo a abandonar a religião.
“Teve um tio, esse conseguimos desassociar, que abusou de duas sobrinhas crianças”, relembra. O homem nunca foi levado à Justiça, conta.
“Eu hoje me arrependo muito de ter participado disso, mas é porque eu não tenho mais a lavagem cerebral eu que tinha lá dentro.”
Os Testemunhas de Jeová dizem que os anciãos “não protegem das autoridades ninguém que comete violência de qualquer tipo, inclusive contra menores”.
“Não aceitamos um abusador em nosso meio e nunca o protegeríamos. As Testemunhas de Jeová são criticadas justamente por seguir princípios bíblicos e excluir do seu meio pessoas que praticam qualquer tipo de imoralidade sexual”, afirmam em nota à BBC News Brasil.
A entidade diz também que “posição das Testemunhas de Jeová para a proteção de menores requer que quando os anciãos tomarem conhecimento de um alegado de abuso, eles relatem isso às autoridades em conformidade com as leis ou no caso que o menor ou a vítima ainda esteja numa situação de risco”.
Ostracismo
E. B. diz que tentou falar sobre o abuso que sofreu quando criança para outros anciãos, de uma congregação diferente, depois de adulta. Conta que novamente ouviu que não deveria procurar as autoridades. Se o fizesse, diz ela, corria o risco de ser expulsa da organização.
“Para quem está na religião, ser desassociado é a pior punição possível”, explica o ex-ancião Osmanito Torres, que fez parte da religião por anos. “Porque existe um ostracismo, a partir do momento em que você é desligado, nenhum (membro da) Testemunha de Jeová pode falar com você, nem as pessoas da sua família. Você é completamente excluído, não podem nem te cumprimentar na rua.”
E para quem tem a família toda e todo o círculo social dentro da religião, o ostracismo é um processo muito violento, diz ele. “Você fica completamente sozinho. Há casos de jovens que se suicidaram porque a mãe parou de falar com eles”, diz Osmanito, que hoje é ativista contra a prática da exclusão.
“Eles têm essa postura de ser um outro governo, um mundo paralelo”, diz a brasileira Vana Lopes coordenadora do grupo Vítimas Unidas, que levou parte das acusações da abuso dentro das Testemunhas de Jeová ao conhecimento do Ministério Público de São Paulo, que investiga os casos.
Desde que foi vítima de um abuso pelo médico Roger Abdelmassih, Vana atua de forma voluntária para ajudar vítimas de outros casos como o dela chegarem à Justiça.
“É importante que o MP e a sociedade entendam essas vítimas, entendam porque elas demoram para denunciar, porque têm medo do ostracismo, porque a família deixa de falar com elas”, afirma Vana Lopes. “Mas as que estão saindo estão começando a denunciar.”
Ester não foi a única vítima que diz ter recebido ameaças de expulsão ao tentar falar dos crimes.
A carioca Ruth* nasceu dentro da religião — toda sua família era testemunha de Jeová. Ela conta que, quando se tornou adolescente, não queria mais fazer parte do grupo.
“Eu queria comemorar aniversário (que é proibido), não aguentava mais a exigência de ter que fazer várias horas de visitas nas casas das pessoas (para fazer pregação), queria ser uma adolescente normal”, conta.
Um ancião então foi questioná-la sobre seu desejo de sair da religião, relata ela. “Ele pediu pra minha mãe para ficar sozinho comigo e começou a fazer perguntas totalmente impróprias: ‘Você fez sexo com alguém? Você fez sexo anal?'”, conta. “Ele passou a mão no meu peito e perguntou se alguém já tinha feito isso.”
“Não tive coragem de falar para ninguém. Mas fui ficando com cada vez mais raiva da religião. Aí um dia eu contei para um grupo de anciãos o que ele tinha feito e disse que ia dar parte dele.”
Os anciãos então abriram uma comissão judicativa contra Ruth, diz ela, e acabaram a expulsando da religião. E o ancião que a assediou não teve nenhum tipo de repreensão ou consequência, diz.
Violência doméstica
A costureira A. P. conta que não nasceu em uma família de testemunhas de Jeová, mas pregadores da religião bateram em sua porta diversas vezes quando ela era uma criança.
“Meu pai tinha acabado de morrer e minha mãe tinha muitos filhos para criar, ela estava muito vulnerável emocionalmente”, diz ela.
A.P. e sua família passaram a frequentar a igreja e a menina era totalmente engajada. Ainda jovem, ficou noiva de um homem da comunidade religiosa.
“Certa vez, quando ele foi me visitar em casa e estava indo embora, voltou dizendo que não havia mais ônibus”, relata A.P.
Para não dizerem na congregação que os dois tiveram relações antes do casamento – o que é proibido – A. P. conta que fez uma cama para ele na sala, a dois colchões de distância dela.
“Minha família era grande, então alguns de nós dormíamos na sala. De noite eu vi ele se levantando e se debruçando sobre a minha irmã, que tinha 12 anos. Eu sou míope, não entendi direito, achei que talvez ele tivesse cobrindo ela. Depois ele correu para o banheiro”, diz,
“Ele viu que eu fiquei desconfiada e confessou para mim que tinha passado a mão nela. Na época eu não sabia o que era pedofilia, eu achei que era só uma traição.”
Quando falou para os anciãos o que tinha acontecido, conta A. P., eles não disseram que era deveria ir às autoridades, não perguntarem se ela tinha testemunhas. Segundo ela, disseram para não contar aquilo à mais ninguém, para perdoá-lo e apressaram seu casamento.
A costureira diz que sofreu violência por anos em seu casamento. Ela relata que seu marido tentava forçá-la a fazer sexo quando ela não estava disposta e a espancava por ter sido recusado.
“Tentei contar diversas vezes para os anciãos, eles diziam que eu deveria ser mais paciente. Isso porque eu era uma mulher que não abria a boca para questionar nada. Diziam que eu deveria dar ao meu marido o que lhe era devido.”
Foi durante uma dessas vezes, afirma, que ela descobriu o que era pedofilia. “Quando contei a um ancião o que ele havia feito com minha irmã, ele me perguntou ‘você sabe o que é isso? É pedofilia.’ Mas nunca, em nenhum momento, eles tomaram alguma atitude contra ele”, diz a costureira.
Quando A. P., o marido e o filho foram morar em uma vila onde residiam diversas testemunhas de Jeová, dois anciãos eram seus vizinhos em ambos os lados.
“A violência dele (do marido) chegou a um ponto que um dos anciãos abriu a parede do quintal entre nossas casas para nos vigiar, porque sabia que ele poderia me bater a qualquer momento”, diz ela.
“Eu tinha muito medo de procurar a polícia e ser desassociada. Eu não tinha para onde ir, minha família, todas as minhas relações eram da igreja”, conta.
A. P. diz que uma noite finalmente teve coragem de ir à polícia depois do marido começar a agredi-la com golpes de karatê. “Não foi fácil”, conta.
O caso, no entanto, nunca virou um processo. “Me disseram que o caso ia pro fórum e iam entrar em contato, mas nunca entraram. Ninguém me informou, na delegacia, que eu deveria voltar e pedir para que ele fosse denunciado à Justiça”, diz ela.
Na época, antes da Lei Maria da Penha, esse tipo de crime era condicionado, ou seja, o caso não podia ser denunciado à Justiça sem que a vítima pedisse por isso. Alice, no entanto, nunca voltou para casa, e acabou saindo da religião com o filho.
“Lá dentro eles dizem que aqui fora todo mundo é horrível, mas foi aqui fora que eu encontrei ajuda, apoio, encontrei um marido que me trata bem, que me ama. Não lá dentro”, diz.
A Igreja diz que não comenta casos específicos, mas que “reconhece que compete às autoridades apurar” denúncias de violência e que “irá colaborar com quaisquer procedimentos jurídicos”.
Na própria família
Aos 65 anos, a ex-testemunha de Jeová Débora* conta que apenas há cinco anos é que conseguiu se abrir de verdade sobre os abusos sexuais que sofreu entre os oito e os 12 anos de idade nas mãos do cunhado, que era um ancião respeitado entre as testemunhas de Jeová.
“Teve um impacto psicológico muito grande na minha vida toda”, diz ela, cuja família toda até hoje é adepta à organização religiosa.
“Aos finais de semana minha mãe costumava me mandar para a casa da minha irmã mais velha para ajudar nos cuidados com as crianças e também porque era a oportunidade para ter uma refeição melhor e uma boca a menos para comer em casa”, conta ela.
Às vezes sua irmã não podia ir às reuniões, então a menina era obrigada a ir com o cunhado. “No caminho de volta, já noite avançada e na escuridão das ruas, ele pegava minha mão e colocava no bolso para segurar o pênis dele, depois abria os botões das calças e mandava que eu segurasse”, relata. À noite, diz ela, o cunhado deitava na cama em que ela estava dormindo e tocava em suas partes íntimas.
“Por vezes sentia uma gosma em minhas mãos e no meu corpo. Eu não entendia o que era aquilo, achava que era vômito, mas para meu espanto de manhã a cama estava aparentemente limpa, eu não conseguia compreender”, conta Débora.
Ela diz que tentou conversar com a mãe diversas vezes para contar o que acontecia, mas a mãe dizia que a menina estava mentindo, que “um ancião não faria uma coisa dessas” e a mandava “calar a boca”.
“Tentei falar do assunto com pelo menos dois anciãos. Eu só queria saber o que era aquilo. Mas sequer chegava na metade do relato, era interrompida com as mais variadas desculpas”, conta.
Débora diz que achava que não podia ir à polícia não só por medo das punições que diziam na igreja que sofreria por “vilipendiar o nome de Jeová”, mas porque tinha horror de ser expulsa e de sua família nunca mais falar com ela.
Foi só depois de muitas anos que Débora conseguiu entender que foi vítima de abuso. E só depois de deixar a religião, e depois que o cunhado já tinha morrido, que ela conseguiu finalmente tratar os traumas deixados por ele, diz ela.
Débora afirma que as informações que obteve depois de se abrir sobre o caso a levaram a achar que o cunhado teve muitas outras vítimas.
Há cerca de quatro meses, ela contou para a irmã sobre o crime que sofreu.
“Fiquei estupefata quando ela me disse que já sabia, que o marido dela ‘era safado mesmo'”, afirma. A irmã disse que certa vez o pegou molestando a filha da vizinha e apenas mandou que “não fizesse mais aquilo”.
“Ela deveria saber que isso é algo que Deus abomina e ela não fez nada para interromper este ciclo”, diz Débora.
A BBC News conversou também com Bruna*, sobrinha neta de Débora e neta do ancião que cometeu os crimes.
A jovem diz que o avô tentou tocá-la diversas vezes quando ela era criança. “Quando eu era pequena ele estava doente, mas mesmo na cadeira de rodas ele colocava eu e minha irmã no colo e ficava se mexendo, se encostando na gente”, afirma. “Eu sempre fugia e protegia a minha irmã.”
“Eu não gostava do meu avô e desconfio que ele abusou até da minha mãe”, diz Bruna, que saiu há pouco tempo da religião.
Tanto Bruna quanto Débora foram excluídas pela família. “É muito difícil, mas eu aprendi que não devo sofrer por pessoas que não se importam comigo, que nunca se importaram.” “Meu cunhado já morreu há muito tempo. Sei que não há nada que as autoridades possam fazer em um caso como esse, mas eu conto isso tudo para que as pessoas saibam que esse tipo de coisa acontece e para impedir que aconteça com outras pessoas”, afirma Débora.
Assim como Débora e Bruna, nenhuma das vítimas que conversaram com a BBC estão mais na religião.
E. B. diz que tudo o que passou a afetou profundamente durante a vida toda, levando a ter diversos problemas pessoas e psicológicos. “Hoje eu sofro depressão. Graças a Deus tenho tratamento, mas tudo isso poderia ter sido evitado”, diz ela, que hoje continua acreditando em Deus, mas não faz parte de nenhuma religião organizada.
“Ainda é muito difícil lidar com a exclusão, nenhum deles fala mais comigo. Mas eu não me arrependo de ter saído”, diz. “Hoje eu sou livre.”
Casos no Exterior
“Existe um padrão de ocultamento de abusos sexuais e violência contra a mulher no mundo todo dentro dessa seita”, afirma o ex-ancião Antonio Madaleno, de Portugal, que escreveu o livro Apóstata para contar de suas experiências na igreja.
Em 2015, um órgão governamental de investigação sobre abusos sexuais contra crianças da Austrália divulgou que a filial australiana das testemunhas de Jeová tinha registrados denúncias de mais de 1,8 mil casos de abusos desde 1950 — nenhum deles denunciado às autoridades pela Igreja.
No Reino Unido a Testemunhas de Jeová foi condenada em 2016 por não proteger uma vítima de abuso sexual e uma comissão governamental investiga como o grupo lida com denúncias de abuso.
Investigação
As Testemunhas de Jeová são uma organização religiosa internacional, criada nos EUA no fim do século 19, que compartilha preceitos de outras correntes do cristianismo, mas baseia suas crenças numa interpretação própria da Bíblia.
Há cerca de 8,5 milhões de Testemunhas de Jeová no mundo todo, segundo a própria organização. A religião é conhecida pela pregação de porta em porta.
De acordo com o último censo populacional do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), de 2010, existiam mais de 1,3 milhões de praticantes da religião no Brasil naquele ano, tornando o país um dos com maior número de fiéis dessa comunidade do mundo.
Em São Paulo, a igreja tentou barrar uma operação de busca e apreensão em suas sedes, e teve o pedido negado pela Justiça no mês passado. A operação foi pedida pelo Ministério Público de São Paulo, que investiga os relatos de abuso sexual, violência e acobertamento contra o grupo religioso desde 2019.
Em nota à BBC Brasil, a entidade afirma que em todos os casos as vítimas e seus pais têm o direito de reportar às autoridades uma acusação de violência contra menores.
“Qualquer pessoa que relatar uma acusação como essa aos anciãos é claramente informada por eles de que têm o direito de reportar o assunto às autoridades”, diz a organização religiosa.
A promotora responsável pela investigação, Celeste Santos, do Avarc (programa de acolhimento de vítimas do MP) diz que recebeu inúmeros relatos de vítimas de abuso sexual e violência — e acredita que mais casos podem vir à tona.
“Apareceram até casos de outros Estados, e a gente aconselhou a procuraram as policiais e ministérios públicos regionais”, conta ela, que só pode investigar e processar crimes que tenham alguma relação com São Paulo.
Uma dificuldade, no entanto, é que, de acordo com a legislação atual, muitos dos crimes denunciados até já prescreveram. Santos, no entanto, afirma acreditar que a Justiça deveria aceitar as denúncias mesmo assim.
“Eu defendo que esse tipo de abuso é equiparável a um crime contra a humanidade, e portanto não prescrevem”, diz a promotora.
Ela afirma que o tempo para que um caso deste seja levado à Justiça deveria ser maior. “A vítima passa por várias fases: de perceber que sofreu uma violência, de entender e depois de buscar a Justiça. Precisamos respeitar o tempo da vítima”, diz ela.
*Com informações da BBC News*