Há uma frase de um juiz norte-americano, Learned Hand, que diz o seguinte: “A mão que governa o jornal, o rádio, a tela e a revista disseminada ao longe, governa o país”.
Usar esta frase para falar de “O Gambito da Rainha”, minissérie da Netflix lançada no mês de outubro, é um tanto quanto válido se observarmos o impacto causado por uma história que outrora tinha tudo para alcançar um público limitado e acabou tornando-se um fenômeno cultural.
Caso ainda não tenha conhecimento, estamos falando da saga de Elizabeth Harmon, personagem criada por Walter Tevis no livro de mesmo nome da minissérie, “O Gambito da Rainha”, em 1983, que se torna um prodígio do xadrez ainda criança e cresce em meio a perdas, vícios, ideologias e um mundo ambicioso da década de 50 nos EUA.
Por mais que a trama ainda pudesse ter seu público fiel no lançamento, a verdade é que o xadrez nem sempre foi visto com bons olhos pela grande massa, sendo considerado por muito tempo um jogo para mentes aguçadas e quase sempre dominado pelo público masculino.
É exatamente nesses dois últimos pontos que entra a fórmula Netflix para remodelar o conceito e produzir conteúdo ao alcance de todos.
A trama não se limita apenas ao xadrez, o segredo consiste naquilo que a Netflix tem apostado na maioria de seus produtos: personagens que acumulam algum tipo de desenvolvimento disfuncional que os deixam mais complexos, porém palpáveis, ou em outras palavras, de fácil identificação com o público.
Sem entrega de spoilers, Beth Harmon tem em sua trajetória um acumulo de traumas, sendo uma garota órfã que de imediato teve contato com as durezas da vida. Como há de se imaginar, ela encontra como válvula de escape o xadrez, interesse incomum por um esporte dominado por homens, e apresentado da maneira mais simbólica possível.
Curiosamente todos os itens citados na frase de Hand, utilizada no começo desse texto, estão inseridos no contexto de “O Gambito da Rainha”. Nesse caso, podemos nos adentrar nos seguintes fatos:
A linguagem cinematográfica, do mesmo modo que a literatura, pode se constituir numa espécie de espada de dois gumes: tanto pode ser usada para ensinar a verdade, despertar nobres sentimentos, dilatar corações, verticalizar ideais — construir; como igualmente, para difundir o erro, a mentira, a corrupção dos costumes — destruir.
Creio que o exemplo do sucesso de “O Gambito da Rainha” é uma junção de tudo isso. As buscas sobre “como jogar xadrez”, no Google, atingiram o pico em pouco tempo; as vendas de tabuleiros aumentaram 250%; as plataformas de xadrez online receberam 500% mais usuários; além do livro homônimo que já figura como best-seller imediato, mesmo depois de 37 anos de seu lançamento.
No Brasil, os principais canais do Youtube sobre a temática apresentaram crescimento além do convencional, ganhando uma média de 400 novos inscritos por dia.
Pois bem, popularizar o xadrez é, sem dúvida, o maior mérito de “O Gambito da Rainha” e também a mais assustadora se levarmos em consideração a grande capacidade de influência das plataformas midiáticas nos últimos tempos.
A atenção quanto ao que se é consumido e o que se é propagado, se faz mais necessária do que nunca. Porém, como um grande apreciador do xadrez, devo dizer que muito me alegra ver que conceitos, até então exacerbados, estão sendo quebrados e jogar xadrez nunca se tornou tão divertido.